Grande parte das vezes saíamos da escola para falarmos sobre as coisas que interessam (poesia, cinema, arte e vida), fosse onde fosse – mesmo dentro da sala – as aulas de História de Arte eram vibrantes, era mais do que história, eram uma espécie de cinema onde o realizador nos propunha várias perspectivas e planos de acção. Descobríamos sempre uma ligação entre nós e as personagens principais. O Fanha promovia as ligações, o Fanha ligou-nos ao mundo, o PROFESSOR era uma espécie de electricista, engenheiro de telecomunicações, telefonista que estabelecia hiperligações. Ensaiava uma roda que nunca parou. Lembro-me uma noite que estivemos ao lado do Carlos paredes e do António Vitorino de Almeida, um tocava e o outro falava sobre o “coca cola killer”, outra vez fomos ver Brecht – Ascensão E Queda Da Cidade De Mahagonny – ele fez os putos adolescentes gostarem de ópera e serem fans de Bertolt Brecht. Outra noite fui com ele à Ritz Club, apresentava-nos com um orgulho fantástico “estes são os meus alunos” como se fossemos nós a estrelas e os outros apenas actores, músicos e pintores, como se nós fossemos os mais importantes seres vivos daquela sala – colocou-me na mesa da Maria de Céu Guerra a falar de igual para igual, quem sou eu para estar ali. Grande parte das aulas eram no café ao lado da escola, num ambiente informal aprendíamos mais do que na escola.
Uma vez o Fanha disse assim na casa do Alentejo num jantar de caridade onde ia declamar poesia: “este Poema é dedicado aos meus alunos que estão ali naquele canto – ponham-se lá de pé (ordenou ele)”. O poema era este:
Romance ingénuo de duas linhas paralelas
Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito a infinito
Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.
Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
“Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim…!”
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!”
Não se dando por achada
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.
(José Fanha, in Eu Sou Português Aqui)
No final das aulas o Fanha dizia sempre
“Por hoje é tudo. Abram as portas. Podem sair”
Eu acho que este poema também era para nós:
Nós nascemos para ter asas, meus amigos.
Não se esqueçam de escrever por dentro do peito: nós nascemos para ter asas.
No entanto, em épocas remotas, vieram com dedos pesados de ferrugem para gastar as nossas asas como se gastam tostões.
Cortaram-nos as asas para que fôssemos apenas operários obedientes, estudantes atenciosos, leitores ingénuos de notícias sensacionais, gente pouca, pouca e seca.
Apesar disso, sábios, estudiosos do arco-íris e de coisas transparentes, afirmam que as asas dos homens crescem mesmo depois de cortadas, e, novamente cortadas, de novo voltam a ser.
Aceitemos esta hipótese, apesar de não termos dela qualquer confirmação prática.
Por hoje é tudo. Abram as janelas. Podem sair.
José Fanha, 1985. Cartas de Marear.
Obrigado Fanha, eu escrevi dentro do peito que tenho asas e sei que elas voltam a nascer depois de arrancadas e sei também que o infinito é logo ali. vou lá todos os dias!